Detroit: os negros na vanguarda musical

Detroit é uma cidade norte-americana localizada no estado de Michigan, na fronteira dos EUA com o Canadá, que teve extrema relevância para a música do último século. Seu protagonismo iniciou-se na década de 1920, quando a expansão da indústria automotiva tornou-a a 4ª maior dos EUA, atraindo muitos trabalhadores negros e, por consequência, talentosos artista de blues e jazz, estilos musicais criados por afro-americanos de cidades do sul do país. Graças a bares e casas de shows em distritos como Black Bottom e Paradise Valley a cena local se tornou um pólo nacional desses estilos até meados dos anos 1950.

Black Bottom e Paradise Valley

Apesar da proeminência negra na cena musical de Detroit, até os anos 70 os afro-americanos eram minoria populacional e sofriam muito, tanto com o preconceito praticado pelos brancos nas indústrias, como pela falta de consideração por parte do poder público, já que, no período após a II Guerra Mundial, a cidade estava passando por um replanejamento urbano que desalojou pessoas mais desfavorecidas e partiu ao meio bairros até então funcionais. Diante disso, tradicionais bares e clubs foram fechados, encerrando o ciclo artístico anterior e abrindo espaço para que novas cenas surgissem, em especial de rock and roll e R&B. Rhythm and blues é um termo cujo significado já mudou bastante ao longo do tempo mas na época incorporava blues, soul e gospel, linha musical que consagraria a Motown Records, gravadora que fez a música de Detroit ultrapassar barreiras e ser reconhecida mundialmente, lançando artistas como Stevie Wonder, Marvin Gaye e até mesmo Michael Jackson.

Berry Gordy, fundador da Motown Records, segurando um dos muitos lançamentos do grupo “The Supremes” pela sua gravadora.

Com o declínio da economia da cidade a tensão racial escalou, culminando nos protestos de 1967. Cinco dias de violentos conflitos que resultaram em 43 mortos, centenas de feridos e intensificaram o “êxodo branco”, que levou boa parte doas pessoas e do capital para outros lugares. Nos anos 1970 a crise mundial do petróleo abalou a indústria automobilística e foi o golpe de misericórdia para a economia de Detroit, que já não era mais nem a 20ª maior cidade dos EUA e tornou-se a 1ª em crimes violentos, sendo considerada pelo FBI a cidade mais perigosa do país até meados dos anos 1980.

Protestos de 1967

Protestos de 1967

Protestos de 1967

Nessa época Detroit tornou-se uma cidade fantasma, mais da metade das construções estavam vazias e os negros buscavam caminhos para reerguê-la. Este cenário melancólico, subversivo e de luta, serviu como sopa primordial para a criação do gênero que hoje chamamos de techno. Tudo começou com três jovens estudantes de Belleville, Juan Atkins, Kevin Saunderson e Derrick May, que encontravam-se em seus porões para fazer música com sintetizadores. Era o encontro da música negra com a cultura sci-fi!

Os Três de Belleville reconheciam o valor da história musical da cidade, mas buscaram criar algo realmente novo, autêntico. Conheceram a cena house em Chicago, a onda synth-pop que vinha da Europa e decidiram que deveriam desenvolver uma nova alternativa para suceder a disco na linha evolutiva da música eletrônica, com atmosferas sombrias inspirados pela alma industrial de Detroit e timbres futuristas a la Kraftwerk que carregavam um idealismo muito forte, uma contrapartida otimista frente à realidade distópica vivida. Nos primeiros momentos os artistas de techno chegaram a enfrentar resistência dentro da própria comunidade negra, de pessoas que alegavam que a influência europeia fazia com que o estilo não fosse “essencialmente negro”, mas para eles o techno deveria ser exatamente isso: uma nova forma de expressão cultural negra, livre das regras e conservadorismos impostos pelos limites do R&B e do hip hop. Nesse sentido, gente como Mike Banks, Von Floyd e Drexciya já marcavam mais forte essa estampa política, trazendo uma estética mais suja e de base funk, que precedeu a base reta que acabou se tornando mais popular posteriormente.

O lado mais polido porém não menos importante veio em seguida, quando artistas como Carl Craig, Kenny Larkin e o duo Octave One protagonizaram a chamada 2ª onda de Detroit techno, com sonoridades mais alegres e vocais marcantes, aproximando-se inclusive do house. Em meados dos anos 90 o epicentro da cena techno mundial acabou movendo-se para a Europa, internacionalizando mais um grande legado musical dos negros de Detroit.

É por isso que todo mundo que se diz influenciado pela música de Detroit tem a obrigação moral de prestar respeito à causa negra. É impossível separar a música da luta política, em especial da luta contra o racismo, pois é graças a grandes artistas afro-descendentes, tanto de Detroit como de diversas outras partes do mundo, que temos a felicidade de poder desfrutar de músicas tão belas e ricas, do jazz ao techno.

Vidas negras importam, e muito!

Bonus Track

Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o assunto, indicamos o documentário “Black to Techno” by Jenn Nkiru | Frieze & Gucci, que ilustra a relação do techno com a cidade e a população de Detroit.